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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Aγάπη, ou a autossuficiência generosa



O comportamento adequado, ideal ou propício é atingido mediante a gestão daquelas atitudes que são determinadas pelos valores supremos. Esta gestão é alcançada através do cultivo de afetos adequados. O tornar-se humano é perpretado através da aquisição da cultura. O ser humano é um jardim de afetos, emoções, sentimentos, ideias, atitudes e valores. O cultivo do jardim, por autonomia ou heteronomia, enseja a adequada motivação para agir, onde emoções e sentimentos propiciam as condições internas tidas como corretas.

Há três valores supremos: um emocional (afeição), um intelectual (curiosidade) e um prático (diligência). Temperança e humildade são os desdobramentos naturais da afeição. Afeição é o sentimento que nos mostra que o melhor mundo depende de nossa boa vontade e do nosso bom desejo, daquilo que cultivamos de melhor, de nossa generosidade, de nossa disposição em interpretar tudo da melhor maneira. Afeição é o modo pelo qual qualquer ser pode conceder (a outrem) ou exprimir (em si) a graça. A temperança se desdobra da afeição, pois interpretar tudo da melhor maneira, isto é, da maneira mais benevolente possível (sem incorrer em inexatidões), nos obriga a ter um controle sobre os afetos negativos, e nos advoga a ter predileção pelos afetos moderados, ou que não produzam moléstia em sua imoderação. Do mesmo modo, a humildade se desdobra da afeição, pois a vontade que interpreta tudo do melhor modo pode apenas oferecer ao ambiente o melhor de si, sem tomar dele nada mais do que o necessário.

No entanto, nada de verdadeiramente bom nasceria da afeição, de modo frutífero, sem ao menos a boa presença tanto da curiosidade quanto da diligência. A curiosidade (a vontade de conhecer) é que nos leva a entender as coisas tal como elas realmente são. A benevolência como estado de espírito precisa ser fundada num conhecimento adequado das coisas. A generosidade que não se funda num processo consistente de avaliação arrisca-se a ter sua nobre intenção contradita pela sua própria prática. Sem ser guiada pelo correto conhecimento de como as coisas são, o que só pode existir mediante a curiosidade, nenhuma ação ou prática poderia ser inteligentemente adequada ou propícia a um estado de coisas, seja este estado dado ou ideal. Por outro lado é a diligência (o perseverar na ação em virtude de seus efeitos) que garante que o melhor das nossas intenções tenha o efeito devido no mundo real.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Humilitas







Somos uma extensão, uma composição do ambiente. Se o mesmo é hostil ou impróprio, só há um caminho: Ser a síntese do melhor dos seus recursos. E superá-lo com graça, em vez de com tamanho ou força. Não se trata de escolher ao que se opor - muito menos de insistir nas oposições - É apenas uma questão de gestão...

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Temperança


"Porque não é o que os humanos mais cortejam que é o melhor,
Nem é o pior aquilo o que mais refusam;
Mas mais conveniente é que todos os alegres permaneçam
com o que contêm: cada um tem a fortuna em seu âmago -

É a mente que faz bem ou mal,
Que faz miséria ou ventura, riqueza ou penúria.
É a mente que cria o bom e o ruim, saúde e doença,
Que estabelece a própria graça ou desgraça."1

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É melhor reinar no céu do que em qualquer outro lugar; e é melhor reinar do que servir; e o céu é melhor do que o inferno; logo, mesmo reinar no inferno não deveria ser considerado melhor do que servir no céu. Isto porque o céu é infinitamente melhor do que o inferno, e reinar não é tão melhor que servir. Servir no céu é uma honra e uma dignidade, enquanto que reinar no inferno necessita constante vigília com contratempos e eventuais insurgentes. Servir por uma boa causa é psicologicamente recompensador, enquanto que dominar seres baixos e vis é tarefa ingrata, pois requer que se alimente do medo, da raiva, do ódio e do rancor.

É claro que não escolhemos o céu e o inferno, prévia e absolutamente. Um imagina o céu e logo dele vai atrás. Não significa que o atinja. Tampouco se escolhe absolutamente entre reinar e mandar ou servir e obedecer, como se fossem tendências iguais. Fazemos como devemos fazer. Fazemos como sentimos que podemos. Mas como o céu e o inferno não existem de fato, mas são inferidos como tais a partir de (1) estados mentais, físicos e emocionais e (2) categorias ideológicas de cada um a cada momento; céu e inferno são totalmente subjetivos. Alguém poderia argumentar que são quase totalmente subjetivos, mas tome a dor para um masoquista: é o céu; ou ao menos um meio para o céu, de qualquer forma. Céu e paraíso correspondem a interpretar as coisas, tais como elas são ou se apresentam, como boas; assim como o inferno corresponde a interpretar as coisas, tais como elas são ou se apresentam, como ruins.

Então, como Spinoza e muitos outros nos disseram, inclusive antes dele, podemos escolher entre céu e inferno. Esta não é uma escolha aleatória, a menos que queiramos. Então a questão é apenas reinar ou servir. E isso depende apenas de nosso desejo de ser amado e de nossa vontade de amar. Mais provavelmente nosso desejo de ser amado nos levaria ao inferno de qualquer maneira, assim como nossa vontade de amar nos levaria ao céu.

E há algo além disso. Enquanto escolhemos amar ou servir (outro ser), nós provavelmente somos levados a sermos amados, considerando que uma reciprocidade relativa é uma lei quase natural das relações sociais e mesmo animais. Todo o ser se comporta conforme considera adequado ao contexto. Se alguém me faz uma carícia, eu provavelmente quererei retorná-la. Se alguém me dá um soco, eu provavelmente quererei retorná-lo. Então assim que escolhemos servir, talvez sejamos levados a reinar, em alguma medida; não sobre tudo, o que é certamente impossível, mas ao menos sobre algumas coisas e alguns seres. E isso deveria ser suficiente.



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"For not that, which men covet most, is best;
Nor that thing worst, which men do most refuse;
But fittest is, that all contented rest
With what they hold; each hath his fortune in his breast."1


"It is the mind that maketh good or ill,
That maketh wretch or happy, rich or poor: (...)"1


Is it better to reign in hell than serve in heaven? (About Milton's phrasing, line 263, book 1)

Not sure. I had an answer for it. Dichotomies are not intelligently laid. Better is to reign in heaven. I guess we actually don't chose heaven or hell, neither do we chose to really reign and rule, or serve and obbey, from equal tendencies. We do as we must. We do as we feel we can. But since heaven and hell don't exist, but they are infered as such from the mental, physical and emotional states and ideological categories of each one in each moment, heaven and hell are totally subjective (one could argue "almost so", but take pain for a masoquist: it is heaven, or a means to heaven, anyway). The choice is paradise (things - as they are or appear to be - are good) over hell (things - as they are or appear to be - are bad).

So, as Spinoza and many others told us, even before him, we can chose heaven over hell. That is not an alleatory choice, unless we will it. So the question is only to reign or to serve. And that depends only on our desire to be loved and in our will to love. Most probably our desire to be loved would lead us to hell anyway, as our will to love would lead us to heaven. Again, the dichotomy does not stand.

And there is something else. As we chose to love or to serve (another being), we probably are lead to be loved, since a relative reciprocity is an almost natural law of social or even animal relations. Any being behave as deem properly to a context. If one makes me a caress, I will probably want to give it back. If one gives me a punch, I will probably want to give it back. So as we chose to serve, we may be lead to reign, to a certain extent, not over all, which is certainly impossible, but at least over some things and some beings. And that should be good enough.


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1 Paráfrase/Quotation by: Spenser, Edmund (1596). In: Craik, George Lillie (1845). Spenser, and His Poetry: In Three Volumes, Volume 3 (P. 71), The Fairy Queene. Ed: Knight.

2 Imgem/Image by: Salhi (2007). Fire Horse. Available in:

3 Música/Music by: Okkervil River (2005). Black. Jagjaguwar: Black Sheep Boy. Track 05.



quinta-feira, 28 de maio de 2015

Exercício de lógica política nº 1 - O “problema” do passe livre



Posições políticas em geral se pautam por em que grupo deve-se baixar os custos de nossos modos de vida. Com o transporte e a proposta de passe livre não é diferente. À primeira vista, parece uma ótima ideia. Afinal, não pagar nada para andar de ônibus é melhor do que pagar R$3,50, não é mesmo? Esta é a perspectiva do usuário.

O que tenho advogado como perspectiva compreensiva envolve fazer um exercício para superar a perspectiva individual (neste caso, a do usuário) e também a perspectiva de classe ou grupo (que determina grupos por suas atribuições ou atributos – o grupos dos usuários, o grupo do governo, o grupo dos trabalhadores – motoristas, cobradores -, o grupo do sindicato, o grupo dos capitalistas – os donos dos ônibus, os concessionários do serviço - , o grupo dos contribuintes, etc.). A perspectiva grupal reúne indivíduos em coletivos, porém opera na mesma lógica individual. O usuário se insere no grupo dos usuários que defende a perspectiva dos usuários. O exercício que proponho pretende que se supere o perspectivismo.

Isto implica pensar o sistema como um todo. O sistema como um todo para todos os envolvidos, e não meramente em função de uma única perspectiva. Quando o usuário propõe o passe livre (para si), é evidente que, em termos de sistema ou totalidade, ele está meramente passando o custo adiante. Porque as propostas de passe livre não garantem que ônibus serão produzidos gratuitamente, que serão mantidos gratuitamente, que o combustível não terá custo algum e que os motoristas e cobradores quererão trabalhar como voluntários não-remunerados. A proposta geral do passe livre tem que se pautar por um financiamento público, isto é, o governo arcar com as despesas.

Sabemos que o governo é uma representação de toda a sociedade. Se o governo pagasse a totalidade da passagem, quem de fato estaria pagando por ela? Todos os contribuintes. Então saímos de uma perspectiva onde é o usuário que paga a passagem para uma onde é o contribuinte que paga a passagem. Isso não serve ao contribuinte. Por quê? Porque o contribuinte que não utiliza o transporte público teria muito pouco interesse pessoal em financiar um serviço que não lhe serve e do qual não se beneficia, ou se beneficia muito pouco.

Logo temos um problema tipicamente político: pessoas de interesses diferentes advogam seus pontos de vista particulares e entram numa arena onde debate e poder se mesclam para definir qual perspectiva será vencedora. O grupo dos contribuintes advogaria o contrário: repassar a totalidade do custo de volta ao usuário. Temos aqui claro uma disputa de interesses inconciliável. O que é benéfico e interessa a um grupo é exatamente o contrário ao que é benéfico e interessa a outro grupo. Como resolver o problema? O que eu quero propor com perspectiva compreensiva é um jeito de englobar todas as perspectivas envolvidas, sem querer simplesmente passar o custo de um grupo para outro. Para isso é necessário arranjar sistemas de organização onde o custo possa ser alcançado através de produtividade (entregar um melhor resultado com menor consumo de recursos), pois terceirizar o custo não o altera, apenas transfere sua responsabilidade. Antes no do outro que no meu, é claro, mas quem sabe não haveria um jeito que pudesse ser adequado a todos? Por mais que impossível seja, mister é tentá-lo.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Our love and our liberty



"But you will never be completely free from risk if you're free”1






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1 Quote by: Snowden, Edward (2015). Interview with John Oliver.

2 Music by: Hardin, Tim (1969). Simple song of freedom. (1996 - Simple Songs of Freedom: The Tim Hardin Collection. Legacy/Sony. Track 1.)



quinta-feira, 26 de março de 2015

Há um programa melhor que o Bolsa-Família



O Bolsa Família foi protagonista da última eleição para presidente. Os dois partidos que foram ao segundo turno foram disputando a paternidade do programa, no que cada um contribuiu com um aspecto. Infrutífero foi discutir de quem é a culpa ou mérito, para além dos interesses eleitoreiros. Mais cabe perguntar: como podemos ter mais ideias que erradiquem a miséria? Como podemos aprimorar estas ideias?

A discussão eleitoral foi longa. Basicamente se discutiu se o benefício era de fato benéfico ou não no sentido de tirar as famílias da zona da miséria. Os desfavoráveis ao programa argumentam que ‘dar o peixe’ cria dependência, e que faríamos melhor se ‘ensinássemos a pescar’ ao invés de incentivar o assistencialismo. Também houve críticas quanto aos números que refletem o sucesso do programa. Enquanto o governo alardeava que os benefícios foram extendidos a mais famílias, houve quem questionasse a eficácia do programa. Estes sugeriam que o sucesso do mesmo deveria ser avaliado não pelo crescente número de famílias que passa a ser beneficiado pelo programa, mas, ao contrário, pelo número de famílias que deixa de ser beneficiado pelo programa por ter adquirido renda mensal acima do teto.

Discussões pontuais quanto ao programa à parte, ele goza de boa aceitação popular. Mas escrevo o texto para colocar outra questão também. Será que não conseguimos aprimorar o Bolsa-Família, levando em consideração as críticas existentes? Aparentemente, um programa melhor já existe desde 1991. Chama-se Saúde Criança, de iniciativa da pedagoga Vera Cordeiro. Aqui está ele: http://www.saudecrianca.org.br/nosso-trabalho/resultados-de-impacto/

Se tudo o que ali se veicula de fato é alcançado, há um modelo já testado e implementado (por 23 anos), de intervenção limitada temporalmente (até 3 anos), onde famílias têm um retorno estrutural (saúde, habitação, financeiro e educação) persistente, quer dizer, que perdura mesmo após a intervenção. Está aí algo a ser analisado e estudado. O que está sendo apresentado leva a crer que seria possível ao governo implementar um programa social mais eficiente e sustentável, e, portanto, mais benéfico. Se o exemplo não falta, o que falta então? Iniciativa!

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sábado, 14 de março de 2015

Brazil, 2013 e o eterno retorno da cultura ou A Imunização Racional



Há que se escolher muito bem uma ideologia, pois as ideologias, seja aqueles que recebemos criticamente ou acriticamente, tendem a se repetir ad aeternum.

Por isso, para não tornar o inferno infinito, nossas convicções deveriam ser de uma fragilidade absoluta: sempre confrontadas e desmentidas com o que quer que consigamos, com ceticismo, erigir como dado empírico. É a época do cientista vencer o filósofo.







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1 Imagem por: Carvalho, Rodrigo (2014). "Cidadãos entram em atrito em nome de suas próprias ideologias". Retirada do vídeo: "Morador do Leblon hostiliza manifestante durante 'rolezinho'". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=k8iy3eehwa8

2 Música por: Maia, Tim (1975). Bom senso. Seroma: Tim Maia Racional Vol. I. Faixa 3.



sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Enquanto caminhamos em meio à morte





A pescadora de intuições me disse



Uma vez que você diz

Algo a alguém

Aquilo se torna deles.



E eu quero dizer

Tudo de bom

Para todo o mundo,

Sempre.1



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Fotografia por Fernanda Gervasoni.

1 Variação do tema de: Mathis, Lora (2015):



sábado, 14 de fevereiro de 2015

Sobre santos e leis brasileiras (ou Forastieri e o pior de 2014)

Ao fim do ano, o jornalista André Forastieri fez um artigo no qual listou 10 dos seus textos mais lidos em 2014. Os três primeiros deles me deram algo a respeito do que pensar. A retrospectiva de Forastieri inova por isentar-se de comentar o melhor e o pior do ano. Não há posicionamento crítico ou estético que desafie o critério que se torna o índice da lista, o impacto social. Com isso, a autoanálise feita aborda com orgulho positividades, porém ignora elementos que poderiam ter sido melhor trabalhados.

Comecemos pelo caso da ex-esportista Laís Souza, campeã da audiência de Forastieri. A Laís o jornalista dedicou uma campanha de solidariedade. “Alguém deve pagar”, escreveu ele, “e não é eu ou você”. Há um mês, dia 13/01/2015, o Palácio do Planalto sanciona a lei Lei 13.087/15, onde Laís ganha pensão vitalícia do INSS (e que obriga Forastieri, eu e você a contribuir), em razão de seu acidente, ocorrido quando Laís não era membro da delegação oficial do COB – Comitê Olímpico Brasileiro. A nova lei é sintomática, não apenas do estilo PT-PSDB de gerenciar (lei proposta por Gabrilli-PSDB, relatada por Suplicy-PT, lei sancionada pela Dilma-PT), mas de toda a cultura brasileira, herança celebrada de uma pretendida miscigenação portuguesa, africana e indígena, entre outras menos numerosas.

Leis devem ser para o povo, devem gerir o povo, e não ser nominais, “personalíssimas”. Me pergunto, ignorante, se Marcelo Yuka recebeu o agrado de semelhante lei. Na análise das diferenças, Yuka sofreu seu infortúnio ao tentar impedir um assalto. Fazia algo bem diferente de sentir adrenalina ao esquiar na neve, na aventura de dedicar-se a um novo esporte. Na ocasião, Forastieri eximiu Laís de responsabilidade. Preferiu ressaltar a responsabilidade “dos defensores do espírito esportivo”, dos marketings de tênis e energético, do COB, de seus patrocinadores e dos políticos brasileiros.

A lógica apresentada contrasta completamente com aquela, do mesmo autor, que julga a lesão de Neymar. Evidentemente, há razões para isso. Neymar joga um esporte popular, que movimenta milhões de reais; o que não é o caso da ginástica ou do esqui, no Brasil. A lesão de Laís é definitiva, a de Neymar, não. Mesmo assim, é de estranhar o tratamento diametralmente diferenciado. Neymar encarna a violência de seu técnico Scolari e de sua seleção, violência esta que foi simplesmente retribuída pelo time adversário, inclusive em menor escala. Neymar conhece os perigos de sua profissão. Por isso “merece estar fora da copa”. Já Laís... Laís não foi informada. Alguém lhe “vendeu as maravilhas do esporte”, alguém “estimulou seu sonho olímpico”.

A seguir a lógica de Forastieri: “Se tenho dó do cara? Como de qualquer garoto em um hospital agora, nem mais, nem menos”. Portanto não é dizer que Laís não mereça a compensação pelo seu infortúnio, apenas que merece tanto quanto qualquer outra pessoa com necessidades especiais neste país. Isso também é representativo de como escolhemos nossos heróis, e de como elegemos socialmente o que compomos como ‘vítima’. A reparação parcial e oportuna que ora vemos é a mea culpa de nossas dificuldades administrativas: como denunciou Forastieri, o contrato de um seguro que não cobria a totalidade dos riscos inerentes à participação dos atletas na Olimpíada. No entanto, tantos outros nossos problemas, coletivos e não meramente individuais, seguem sem nosso devido mea culpa, com a morosidade e burocracia que também é representativa de nossa cultura. O próprio projeto de lei de Gabrilli que advoga uma segurança a todos atletas olímpicos e paralímpicos segue no trâmite. Seria mais compreensível que o caso de Laís fosse resolvido no judiciário, não via legislativo e executivo. Mas sabe-se que o nosso sistema judiciário sofre e faz sofrer. E a lei nominal, “personalíssima”, não é novidade.

Ao utilizar exclusivamente o critério da audiência, Forastieri, mesmo recusando-se a isso, pareceu-nos induzir a coincidir qualidade com popularidade. É perceptível que Forastieri é um jornalista que procura ressaltar o que não está no holofote, muitas vezes às custas, em contraposição, ao que está (Laís merecedora de solidariedade contra Neymar indigno do mesmo sentimento é o perfeito exemplo). Como entender este revisionismo centrado apenas no sucesso de audiência? Um lapso momentâneo de personalidade? Desejo de celebração, inspirado pelas comemorações de final de ano? Quem sabe... Para nós o que importa é ressaltar o que identificamos como problema. E o problema não é tanto considerar o impacto social dos textos, o que é completamente pertinente: a questão é reificar este critério como o único.

Forastieri disse ter escrito ao longo do ano com o fígado. Perguntamos: do que este fígado se alimentou? Obsessão pelo dinheiro e nojo pela fama que é considerada injusta foram os motores dos populares artigos do ano. Mais um prato cheio para as análises culturais de quem gosta de análises culturais.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Dr. Seuss à solta, ou os antropófagos da floresta



Ontem adormecemos eu e Fernanda vendo três episódios do Dr. Seuss.



Eles são bem característicos e peculiares, não só pelo desenho, intenção e forma, quanto por seu caráter moral. ‘Green eggs and Ham’ é sobre experimentar, verificar isso que o mundo constantemente nos oferece, sem um uma rigidez mental previamente estabelecida. ‘Zax’ não fica tão longe, e também retrata a teimosia, a rigidez mental (e física) de seres que estão centrados numa meta ou num modo de ser. Por estarem obcecados naquilo e não verem nenhuma possibilidade de mudança acabam ficando presos, trancados em meio a um mundo que evolui, um mundo que segue, sem se preocupar tanto com o que quer que aquelas duas pequenas existências quisessem. Já não há caminho livre a seguir, pois o restante dos seres tomou aquele lugar e fez dele um caminho próprio, que servisse a seus interesses ou ideais. E é esta fixidez, esta impossibilidade de se reinventar, de reinventar um objetivo, meta, ideal ou destino, esta impossibilidade imaginada, e apenas imaginada, de dar um passo ao lado, mudar, levemente que seja, de rota, é que impede e atravanca todo um modo de ser, e ainda o atravanca num modo de ser que não realiza o que intenta, e que só pode ser triste ou raivoso. Há também o aspecto de não arredar o pé dali por alguém, por não querer ver alguém vencer, por um entender que é necessário não se submeter a uma situação, ainda que ele seja, a bem da verdade, insignificante.

São desenhos importantes e significativos em sua mensagem. Mas minha ideia mais original a respeito deles é relacionada aos ‘Sneetches’. Os Sneetches fazem categorias e hierarquias através de suas categorias, mantendo um ranking ideal e esnobe de seres. Os que possuem estrela na barriga consideram-se superiores aos que não têm. Aos que não têm nunca ocorre de se acharem superiores exatamente por não terem... o que é estranho, curioso. Sabemos que povos são etnocêntricos tanto quanto pessoas são egocêntricas. Um indígena vai querer ser indígena, um europeu quererá continuar sendo um europeu, em geral. Este é o movimento mais comum ou ‘natural’, se ainda cabe o uso desta palavra. O indígena vê no europeu um destruidor, alguém sem noção alguma do que seja mais valioso: a natureza, a vida. O europeu acha o indígena um estúpido, um atrasado, um primitivo, alguém desprovido de racionalidade ou até mesmo de alma. Muito tarde lhe ocorre que talvez seja alguém simplesmente provido de uma racionalidade diferente, uma ética diferente, um modo de avaliar diferente.

Mas este é o exemplo de duas sociedades que não se misturam. Elas seguem, cada uma, seu próprio rumo. O europeu destruirá a natureza, em larga escala, e não se importará com a vida daqueles que estarão no caminho do seu ideal de lucro e status social. O indígena seguirá com suas avaliações ainda que isso implique ser esmagado, expulso de seu habitat, do convívio com lugares e seres que lhe são sagrados, até que seja efetivamente dizimado, pois o modo como luta por seus ideais é completamente distinto do europeu, muito menos inescrupuloso no seu maior poder de fogo e no abuso deste poder. Isto é histórico, não cometo nenhuma injustiça.

Há o caso das sociedades que se misturam. E muitas vezes é o caso do ameríndio que tenha, mesmo após contato com o europeu e sua ideologia, sobrevivido. A ideologia contamina, transforma a sociedade, a cultura, as avaliações e os modos de avaliar. Tenho falado do europeu, mas hoje muitos de nós, americanos, são o que o europeu era. Estamos falando da ideologia europeia, é preciso que fique claro, não do europeu simplesmente porque ele nasceu num lugar chamado Europa. Aqui não importa quem é europeu, indígena ou africano. Ou não deveria importar.

Viveiros de Castro é bem claro em sua proposta: o brasileiro deveria parar de querer ser europeu, e assumir aquilo que é. Aquilo que é não está definido, mas certamente não é o europeu. E se queremos que o mundo sobreviva, todos os povos, inclusive o europeu, necessitam deixar de ser europeus. Deixar de fazer esta avaliação, este modo de avaliar que é historicamente típico do europeu.

Mas eu falava do Dr. Seuss, dos Sneetches. No desenho, chega o capitalista e joga um jogo desgraçado com os Sneetches. Vende estrela para os que não tem, vende um serviço que retira as estrelas dos que têm. Na ânsia de querer se diferenciar, não só de se diferenciar, pois eles já eram diferentes - na ânsia de querer ser superior a outros Sneetches, os Sneetches entram num círculo vicioso onde perdem toda sua identidade e reserva de valor que tinham adquirido. Quando não há mais nada, o capitalista vai embora, certamente em busca de novos povos dispostos a acreditar em suas promessas e seu modo de avaliar, dispostos a fazer funcionar a sua fábrica de ilusões que alimenta a nossa eventual e irrealizável vontade de ser superior. O capitalista é aquele da ideologia europeia, é claro.

O que acontece na realidade é bem diferente: nosso capitalista não monta dois serviços distintos, um de colocar e outro de retirar estrelas. Nunca se trata de ter uma estrela só. O jogo dele é único: ele apenas coloca estrelas. Para se diferenciar uns dos outros de modo a se considerarem superiores uns aos outros, os Sneetches adquirem cada vez mais estrelas. Estrelas para a barriga, para as nádegas. Estrelas nos bíceps e no nariz. Estrelas para pendurar na parede. Estrelas para pendurar no pescoço. Estrelas com rodas e motores para desfilar na praia. Não há limites para as estrelas. E todos querem delas um pouco mais. Para serem mais no no jogo de ser mais dos Sneetches. E o capitalista nunca vai embora, pois há sempre um Sneetch querendo mais estrelas para ser mais que os outros Sneetches. Há um que compra uma montanha de estrelas só para sentar nelas e olhar os outros lá de cima. O mundo aqui de cima é muito mais bonito, diz aquele Sneetch. Aquele Sneetch, receio gravemente, sou eu quando acredito na fábrica de ilusões da ideologia europeia.

Sempre que me perguntam como é a Europa, posso ver nos olhos alheios um brilho estranho de tão especial. Eles sorriem algo exultantes quando respondo, do modo mais simplório e mentiroso possível, uma pergunta impossível de responder. Eu não sei porque até hoje eu disse exatamente o que eles queriam ouvir - espírito de galhofa, talvez? A partir de hoje, não direi mais. Era tão estranho quando eu dizia “é melhor”, pois eu conseguia ver naqueles olhares um conforto satisfeito... Não deveria ser um desespero - por elogiar precisamente o que não tinham, o que não eram? E percebo que o que alimentava neles com minha resposta mentirosa, tão mentirosa como a fábrica de ilusões, era uma esperança maldita. Uma esperança religiosa de que há um mundo melhor e de que ele seja de alguma forma alcançável, bastando replicar o modelo. A Europa não é melhor. É um lugar velho e decadente. E todos aqueles que valorizarem esta ideologia europeia se tornarão também velhos e decadentes.

Isso não quer dizer que somos melhores. Que devemos ouvir a voz esquecida do etnocentrismo. Devemos continuar mudando, recusar-se a ser um ‘Zax’. Mas significa que devemos estar atentos a um modelo, um modelo que não está pronto e provavelmente nunca vai estar. De todo o modo, definitivamente precisa ser um modelo onde não destruímos o mundo; nem o próximo, nem o distante. Um modelo onde é possível conviver com outros modos de ser diferentes dos nossos, desde que eles também não sejam violentos, explorativos ou destrutivos. Um modelo onde vida e convivência pacífica e respeitosa sejam os valores maiores. Este é nosso desafio agora. E deve ser feito em larga escala.