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sábado, 24 de janeiro de 2015

Dr. Seuss à solta, ou os antropófagos da floresta



Ontem adormecemos eu e Fernanda vendo três episódios do Dr. Seuss.



Eles são bem característicos e peculiares, não só pelo desenho, intenção e forma, quanto por seu caráter moral. ‘Green eggs and Ham’ é sobre experimentar, verificar isso que o mundo constantemente nos oferece, sem um uma rigidez mental previamente estabelecida. ‘Zax’ não fica tão longe, e também retrata a teimosia, a rigidez mental (e física) de seres que estão centrados numa meta ou num modo de ser. Por estarem obcecados naquilo e não verem nenhuma possibilidade de mudança acabam ficando presos, trancados em meio a um mundo que evolui, um mundo que segue, sem se preocupar tanto com o que quer que aquelas duas pequenas existências quisessem. Já não há caminho livre a seguir, pois o restante dos seres tomou aquele lugar e fez dele um caminho próprio, que servisse a seus interesses ou ideais. E é esta fixidez, esta impossibilidade de se reinventar, de reinventar um objetivo, meta, ideal ou destino, esta impossibilidade imaginada, e apenas imaginada, de dar um passo ao lado, mudar, levemente que seja, de rota, é que impede e atravanca todo um modo de ser, e ainda o atravanca num modo de ser que não realiza o que intenta, e que só pode ser triste ou raivoso. Há também o aspecto de não arredar o pé dali por alguém, por não querer ver alguém vencer, por um entender que é necessário não se submeter a uma situação, ainda que ele seja, a bem da verdade, insignificante.

São desenhos importantes e significativos em sua mensagem. Mas minha ideia mais original a respeito deles é relacionada aos ‘Sneetches’. Os Sneetches fazem categorias e hierarquias através de suas categorias, mantendo um ranking ideal e esnobe de seres. Os que possuem estrela na barriga consideram-se superiores aos que não têm. Aos que não têm nunca ocorre de se acharem superiores exatamente por não terem... o que é estranho, curioso. Sabemos que povos são etnocêntricos tanto quanto pessoas são egocêntricas. Um indígena vai querer ser indígena, um europeu quererá continuar sendo um europeu, em geral. Este é o movimento mais comum ou ‘natural’, se ainda cabe o uso desta palavra. O indígena vê no europeu um destruidor, alguém sem noção alguma do que seja mais valioso: a natureza, a vida. O europeu acha o indígena um estúpido, um atrasado, um primitivo, alguém desprovido de racionalidade ou até mesmo de alma. Muito tarde lhe ocorre que talvez seja alguém simplesmente provido de uma racionalidade diferente, uma ética diferente, um modo de avaliar diferente.

Mas este é o exemplo de duas sociedades que não se misturam. Elas seguem, cada uma, seu próprio rumo. O europeu destruirá a natureza, em larga escala, e não se importará com a vida daqueles que estarão no caminho do seu ideal de lucro e status social. O indígena seguirá com suas avaliações ainda que isso implique ser esmagado, expulso de seu habitat, do convívio com lugares e seres que lhe são sagrados, até que seja efetivamente dizimado, pois o modo como luta por seus ideais é completamente distinto do europeu, muito menos inescrupuloso no seu maior poder de fogo e no abuso deste poder. Isto é histórico, não cometo nenhuma injustiça.

Há o caso das sociedades que se misturam. E muitas vezes é o caso do ameríndio que tenha, mesmo após contato com o europeu e sua ideologia, sobrevivido. A ideologia contamina, transforma a sociedade, a cultura, as avaliações e os modos de avaliar. Tenho falado do europeu, mas hoje muitos de nós, americanos, são o que o europeu era. Estamos falando da ideologia europeia, é preciso que fique claro, não do europeu simplesmente porque ele nasceu num lugar chamado Europa. Aqui não importa quem é europeu, indígena ou africano. Ou não deveria importar.

Viveiros de Castro é bem claro em sua proposta: o brasileiro deveria parar de querer ser europeu, e assumir aquilo que é. Aquilo que é não está definido, mas certamente não é o europeu. E se queremos que o mundo sobreviva, todos os povos, inclusive o europeu, necessitam deixar de ser europeus. Deixar de fazer esta avaliação, este modo de avaliar que é historicamente típico do europeu.

Mas eu falava do Dr. Seuss, dos Sneetches. No desenho, chega o capitalista e joga um jogo desgraçado com os Sneetches. Vende estrela para os que não tem, vende um serviço que retira as estrelas dos que têm. Na ânsia de querer se diferenciar, não só de se diferenciar, pois eles já eram diferentes - na ânsia de querer ser superior a outros Sneetches, os Sneetches entram num círculo vicioso onde perdem toda sua identidade e reserva de valor que tinham adquirido. Quando não há mais nada, o capitalista vai embora, certamente em busca de novos povos dispostos a acreditar em suas promessas e seu modo de avaliar, dispostos a fazer funcionar a sua fábrica de ilusões que alimenta a nossa eventual e irrealizável vontade de ser superior. O capitalista é aquele da ideologia europeia, é claro.

O que acontece na realidade é bem diferente: nosso capitalista não monta dois serviços distintos, um de colocar e outro de retirar estrelas. Nunca se trata de ter uma estrela só. O jogo dele é único: ele apenas coloca estrelas. Para se diferenciar uns dos outros de modo a se considerarem superiores uns aos outros, os Sneetches adquirem cada vez mais estrelas. Estrelas para a barriga, para as nádegas. Estrelas nos bíceps e no nariz. Estrelas para pendurar na parede. Estrelas para pendurar no pescoço. Estrelas com rodas e motores para desfilar na praia. Não há limites para as estrelas. E todos querem delas um pouco mais. Para serem mais no no jogo de ser mais dos Sneetches. E o capitalista nunca vai embora, pois há sempre um Sneetch querendo mais estrelas para ser mais que os outros Sneetches. Há um que compra uma montanha de estrelas só para sentar nelas e olhar os outros lá de cima. O mundo aqui de cima é muito mais bonito, diz aquele Sneetch. Aquele Sneetch, receio gravemente, sou eu quando acredito na fábrica de ilusões da ideologia europeia.

Sempre que me perguntam como é a Europa, posso ver nos olhos alheios um brilho estranho de tão especial. Eles sorriem algo exultantes quando respondo, do modo mais simplório e mentiroso possível, uma pergunta impossível de responder. Eu não sei porque até hoje eu disse exatamente o que eles queriam ouvir - espírito de galhofa, talvez? A partir de hoje, não direi mais. Era tão estranho quando eu dizia “é melhor”, pois eu conseguia ver naqueles olhares um conforto satisfeito... Não deveria ser um desespero - por elogiar precisamente o que não tinham, o que não eram? E percebo que o que alimentava neles com minha resposta mentirosa, tão mentirosa como a fábrica de ilusões, era uma esperança maldita. Uma esperança religiosa de que há um mundo melhor e de que ele seja de alguma forma alcançável, bastando replicar o modelo. A Europa não é melhor. É um lugar velho e decadente. E todos aqueles que valorizarem esta ideologia europeia se tornarão também velhos e decadentes.

Isso não quer dizer que somos melhores. Que devemos ouvir a voz esquecida do etnocentrismo. Devemos continuar mudando, recusar-se a ser um ‘Zax’. Mas significa que devemos estar atentos a um modelo, um modelo que não está pronto e provavelmente nunca vai estar. De todo o modo, definitivamente precisa ser um modelo onde não destruímos o mundo; nem o próximo, nem o distante. Um modelo onde é possível conviver com outros modos de ser diferentes dos nossos, desde que eles também não sejam violentos, explorativos ou destrutivos. Um modelo onde vida e convivência pacífica e respeitosa sejam os valores maiores. Este é nosso desafio agora. E deve ser feito em larga escala.