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sábado, 14 de fevereiro de 2015

Sobre santos e leis brasileiras (ou Forastieri e o pior de 2014)

Ao fim do ano, o jornalista André Forastieri fez um artigo no qual listou 10 dos seus textos mais lidos em 2014. Os três primeiros deles me deram algo a respeito do que pensar. A retrospectiva de Forastieri inova por isentar-se de comentar o melhor e o pior do ano. Não há posicionamento crítico ou estético que desafie o critério que se torna o índice da lista, o impacto social. Com isso, a autoanálise feita aborda com orgulho positividades, porém ignora elementos que poderiam ter sido melhor trabalhados.

Comecemos pelo caso da ex-esportista Laís Souza, campeã da audiência de Forastieri. A Laís o jornalista dedicou uma campanha de solidariedade. “Alguém deve pagar”, escreveu ele, “e não é eu ou você”. Há um mês, dia 13/01/2015, o Palácio do Planalto sanciona a lei Lei 13.087/15, onde Laís ganha pensão vitalícia do INSS (e que obriga Forastieri, eu e você a contribuir), em razão de seu acidente, ocorrido quando Laís não era membro da delegação oficial do COB – Comitê Olímpico Brasileiro. A nova lei é sintomática, não apenas do estilo PT-PSDB de gerenciar (lei proposta por Gabrilli-PSDB, relatada por Suplicy-PT, lei sancionada pela Dilma-PT), mas de toda a cultura brasileira, herança celebrada de uma pretendida miscigenação portuguesa, africana e indígena, entre outras menos numerosas.

Leis devem ser para o povo, devem gerir o povo, e não ser nominais, “personalíssimas”. Me pergunto, ignorante, se Marcelo Yuka recebeu o agrado de semelhante lei. Na análise das diferenças, Yuka sofreu seu infortúnio ao tentar impedir um assalto. Fazia algo bem diferente de sentir adrenalina ao esquiar na neve, na aventura de dedicar-se a um novo esporte. Na ocasião, Forastieri eximiu Laís de responsabilidade. Preferiu ressaltar a responsabilidade “dos defensores do espírito esportivo”, dos marketings de tênis e energético, do COB, de seus patrocinadores e dos políticos brasileiros.

A lógica apresentada contrasta completamente com aquela, do mesmo autor, que julga a lesão de Neymar. Evidentemente, há razões para isso. Neymar joga um esporte popular, que movimenta milhões de reais; o que não é o caso da ginástica ou do esqui, no Brasil. A lesão de Laís é definitiva, a de Neymar, não. Mesmo assim, é de estranhar o tratamento diametralmente diferenciado. Neymar encarna a violência de seu técnico Scolari e de sua seleção, violência esta que foi simplesmente retribuída pelo time adversário, inclusive em menor escala. Neymar conhece os perigos de sua profissão. Por isso “merece estar fora da copa”. Já Laís... Laís não foi informada. Alguém lhe “vendeu as maravilhas do esporte”, alguém “estimulou seu sonho olímpico”.

A seguir a lógica de Forastieri: “Se tenho dó do cara? Como de qualquer garoto em um hospital agora, nem mais, nem menos”. Portanto não é dizer que Laís não mereça a compensação pelo seu infortúnio, apenas que merece tanto quanto qualquer outra pessoa com necessidades especiais neste país. Isso também é representativo de como escolhemos nossos heróis, e de como elegemos socialmente o que compomos como ‘vítima’. A reparação parcial e oportuna que ora vemos é a mea culpa de nossas dificuldades administrativas: como denunciou Forastieri, o contrato de um seguro que não cobria a totalidade dos riscos inerentes à participação dos atletas na Olimpíada. No entanto, tantos outros nossos problemas, coletivos e não meramente individuais, seguem sem nosso devido mea culpa, com a morosidade e burocracia que também é representativa de nossa cultura. O próprio projeto de lei de Gabrilli que advoga uma segurança a todos atletas olímpicos e paralímpicos segue no trâmite. Seria mais compreensível que o caso de Laís fosse resolvido no judiciário, não via legislativo e executivo. Mas sabe-se que o nosso sistema judiciário sofre e faz sofrer. E a lei nominal, “personalíssima”, não é novidade.

Ao utilizar exclusivamente o critério da audiência, Forastieri, mesmo recusando-se a isso, pareceu-nos induzir a coincidir qualidade com popularidade. É perceptível que Forastieri é um jornalista que procura ressaltar o que não está no holofote, muitas vezes às custas, em contraposição, ao que está (Laís merecedora de solidariedade contra Neymar indigno do mesmo sentimento é o perfeito exemplo). Como entender este revisionismo centrado apenas no sucesso de audiência? Um lapso momentâneo de personalidade? Desejo de celebração, inspirado pelas comemorações de final de ano? Quem sabe... Para nós o que importa é ressaltar o que identificamos como problema. E o problema não é tanto considerar o impacto social dos textos, o que é completamente pertinente: a questão é reificar este critério como o único.

Forastieri disse ter escrito ao longo do ano com o fígado. Perguntamos: do que este fígado se alimentou? Obsessão pelo dinheiro e nojo pela fama que é considerada injusta foram os motores dos populares artigos do ano. Mais um prato cheio para as análises culturais de quem gosta de análises culturais.

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